Que meus filhos e netas recordem o meu amor pela escrita! Afinal as histórias são feitas para serem partilhadas. Só assim elas se propagam e se perpetuam...

sábado, 6 de junho de 2015

O FILHO DO EMBONDEIRO


A guerra, essa guerra maldita entre brancos e pretos os turras como lhe chamavam que tanto sofrimento causava a ambos os lados.

E foi numa dessas operações militares que num repente chegaram a uma pequena aldeia pacata e varreram tudo a tiro, não satisfeitos perante um cenário de gritos mortos e feridos acabaram incendiando as pobres palhotas que abrigavam aquela gente das cacimbas na noite e do sol tórrido do dia.

Apenas acabaram a chacina, viraram costas e deixaram tudo para trás sem dó nem piedade.

Kalimba que vivia com seu avô após ter ficado órfão desta guerra, escondeu-se no mato encolhido dentro de si como se não existisse, no meio de um mato de micaias que lhe rasgava a pele, mas nem sentia dor.

Quando tudo silenciou e as berliets já faziam o seu regresso a outras paragens, kalinga tomou coragem e rastejou até ao centro da aldeia.

Mataram todos, os que não morreram com balas ficaram queimados dentro das casas  onde se haviam refugiado.

E seu avô, onde estaria, corre em direcção ao rio onde era costume sentarem-se à sombra enquanto lançavam a linha na esperança que algum peixe pende picasse.

O velho já de olhos vidrados, gemendo baixinho olha o neto numa despedida sofrida e cai para o lado.

Kalinga ficara sozinho, com a roupa que vestia, já gasta e rasgada embrenha-se pelos matos fugindo nem sabe ao quê.

A dor, as tropas, o cenário dantesco que deixara para trás não sabe, apenas caminha mato fora com uma catana na mão que lhe dera seu avô.

Caminha sem rumo até que a noite chega e com ela o cacimbo, os rugidos das feras, o sibilar das cobras e outras bichezas que rastejam pelo chão.

Sobe a uma árvore onde se acomoda para passar a noite, mas quase não dorme tem medo de cair ou que alguma fera trepe e o apanhe dormindo. 

Não chora nem quase respira para que não dêem pela sua presença e assim fica até que o sol nasça.

Dois dias passam perdido nos matos escondendo-se dos perigos e do sol tórrido do dia e da cacimba fria da noite.

Encontra o caminho de terra já meio coberto pelos capins que livremente crescem nos matos, onde certamente apenas alguns homens passa para caçar ou a caminho de nenhures.

Vai caminhando por ele meio escondido a medo, na esperança que vá dar a sítio algum.

Um grande embondeiro acolhe-o por alguns dias, cansado e com fome já as forças o abandonaram, precisa descansar. Sente que ali já a tropa não chega e apanha alguns frutos do mato e "malambe" que lhe sacia a fome.

Eis senão quando acorda com passos arrastados e vozes em surdina, assustado esconde-se no mato até que se aperceba de onde surge tal ruído.

Uma velha, já de muita avançada idade caminha arrastando os pés com uma pau na mão que lhe equilibra os passos, de peitos de fora com apenas uma capulana suja e rasgada lhe tapa o restante corpo.

Desdentada com apenas um ou outro dente já amarelecido pelo tempo, ou pelo cigarro de folha que trás sempre na boca com o morrão escondido

Fala em surdina, não se percebe o que diz, mas vai falando enquanto acaricia o velho tronco do embondeiro, acaricia-o e encosta a cara nele, com um carinho inexplicável.

Repete isto dias seguidos, até que Kalinga resolve aparecer naquele dia quando lhe sente os passos arrastados. 

Foi com muita cautela que se deixa ficar sentado encostado ao velho tronco, esperando que a velha desse a primeira volta desse dia.

Encolhido, com a cara enfiada entre os braços cruzados apoiados nas magras pernas mais parecia um ser esquecido pelo tempo, quando sente a  mão calejada apoiar na sua cabeça enquanto a velha solta gritos de alegria iniciando uma dança comum nos nascimentos das crianças.

Não sabe se fuja ou se fique ao vê-la aproximar-se mas as forças que já não tinha petrificaram-no até sentir que ela lhe lançava os braços acarinhando-o como se fosse filho dela.

Confia e deixa-se levar por ela atravessando carreiros que percorriam os matos só dela, onde mais ninguém passara até que chegam a uma  palhota já de pouco capim a cobri-la e sem porta onde ela se recolhia do mundo à noite.

Chama-lhe insistentemente de filho, o filho do embondeiro que ela tanto pediu que nascesse rápido quando das visitas diárias o acarinhava no seu tronco bojudo que na sua cabeça seria a barriga que gerava aquele filho.

E embalava-o, cantava-lhe baixinho enquanto dorme.

Kalinga só mais tarde percebe que era também uma fugitiva da guerra que lhe roubara toda a família incendiando a aldeia como sempre faziam, o que dado a idade a deixara com a mente perturbada, mas afinal ele também estava só e ficaria com ela mesmo sendo filho de um embondeiro, havia encontrado um porto seguro. 



Sem comentários: