Que meus filhos e netas recordem o meu amor pela escrita! Afinal as histórias são feitas para serem partilhadas. Só assim elas se propagam e se perpetuam...

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Viajando por Moçambique -part IV

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O cansaço já começa a tomar conta de nós, são muitas as horas de viagem e muitas as emoções, mas uma hora mais e chegaremos ao destino, Tete.

Andar á noite haviam-nos avisado que poderia ser perigoso mas nada havia a fazer senão seguir em frente, dormir no carro não seria opção melhor e a partir de Vila Pery as opções de pernoita não eram nenhumas.

Desviamos a atenção para os macacos que atravessam a estrada, e aquele por do sol que nos enche a alma.

Começa a imaginação a funcionar, e se conseguíssemos ver leões e gazelas, seria uma surpresa.

Aqui novamente recordo as noites em que ia com meu pai á caça, tantas horas a caminhar por aquele mato fora, lanterna na cabeça, arma na mão e dava para escolher o que se queria abater. Caçava-se por subsistência ou desporto mas controlado, apenas uma ou duas peças de caça que iriam encher a geleiras de todos, patrões e pessoal.

Mas não, estava tudo deserto, como acontece em África quando a noite manda que recolham a casa.

A paisagem também mudou, desapareceram as arvores que marcavam as silhuetas escuras nas fotos do por do sol, apenas o capim seco e as malambeiras.

Fomos andando, como que adivinhando o caminho, demos conta de passar o desvio para o Songo, para a Caroeira e no escuro da noite vimos ainda as casas que eram o Retiro da Saudade, a fábrica nova de tabaco recentemente ali construída.



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Estávamos perto, estranhamos a entrada na cidade que já não era pela avenida principal, onde havia há anos um nicho com a imagem de N.Senhora como que dando as boas vindas a quem chegava.

Agora a entrada era pela “circular externa” da cidade.
Uma sensação de retorno a casa foi-se apoderando de nós, avistamos a ponte, o velho Sporting etc.


Havíamos marcado dormida no velho Hotel Zambeze agora recuperado de um período de total abandono.

Chegamos á cidade que nos vira nascer, por ai ficamos mais dias, afinal há toda uma vida para recordar.





quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Viajando por Moçambique -Part III



Após o almoço e de estômagos mais aconchegados, comecei a ver tudo com outros olhos, a paisagem luxuriante lá estava, os laranjais, afinal Chimoio era o centro da comercialização de produtos agrícolas e tabaco.

Alguém comentou comigo que bem perto havia grandes plantações de flores que exportavam, fruto de trabalho de alguns agricultores Rodesianos que optaram por sair daquele país para se estabelecerem por ali.

Vila Pery merecia mais tempo de visita, ficava por ver a velha Chicamba real, recordar mais que não fosse a maravilhosa vista do lago lá de cima do miradouro.

A cabeça do velho estava com a mesma espectacularidade de sempre, formação rochosa que ficou indiferente ao passar dos tempos.

Era um ponto de referência para quem viajava ate aquelas paragens.



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                                                        Estrada Vila Pery-Tete

Partimos, pela velhinha EN102 que tantas vezes fiz, a paisagem vai mudando ao longe apenas capim alto e micais secas estendem-se por todo, aqui e ali palhotas marcam o local de vivência dos povos locais, e as “malambeiras “ que nos acompanham já há longo tempo.
Avista-se  as formações rochosas que fazem fronteira com a ex Rhodesia, hoje Zimbabwe.

Encosto-me fecho os olhos e recordo aquele belo país onde residi e fui tão feliz- A Suiça Africana.

Convicta que todo o caminho seria uma pista, deixei-me ficar aninhada no meu canto, mas aí é que me enganava, havia zonas boas outras com imensos buracos o que nos obrigam a ficar de olhos abertos até encontrar o melhor piso para passarmos.

Questiono-me como transita as gentes entre o planalto verdejante do Chimoio onde se vão abastecer de bens alimentares  a cidade de Tete.

Mais uns solavanco e adiante, Vila Gouveia agora Catandica ,zona rica do Barué, vem-me á memória os vastos cultivos de girassol e a loja do Valy Ossman. 

Vila simpática onde se sentia a leveza diáfana do clima tropical de altitude.


Aproxima-se o Guro, local ligado para sempre a família Serras Pires, uma casa cheia de gente, comandada pela matriarca D.Maria, sempre pronta a receber toda a gente.

Noutros tempos, uma  paragem, obrigatoria pela amizade destas gentes, hoje pouco ou nada resta da imagem de outrora.
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Quase me parece ver atravessar a estrada a professora baixinha e loira que nos últimos anos, destacada, dava aulas na escola local, se não me trai a memória chamava-se Teresa.

Ainda namoriscou um amigo, já desaparecido, grande companheiro do Jacinto Robalo e que me apresentou, nas escadarias do velho cine S.Tiago. numa das visitas a Tete

Mas não, por ali também passou o abandono e desleixo que destruiu tudo que de maravilhoso tinha aquela casa nos tempos áureos, de cor branca e  imensas flores quebrando a monotonia da paisagem.


Aceleramos em direcção a Changara, a estrada melhorava o que nos ajudava a recuperar o tempo perdido anteriormente.

A noite caía rapidamente e havia ainda muito chão para andar.


Changara, para muitos nada dirá este nome, mas para mim que tantas vezes por ali passei, olho desolada e apenas resistem os velhos embondeiros.

A casa do chefe do posto, pai da Fernanda e do Carlos Jacinto, as outras casas, já lá não está.

Talvez pela noite que já baixa eu as não veja, mas devem estar ainda no mesmo sitio, ou será que me responde Julius Kazembe , no seu poema


Changara
 Engoliram luas as crianças de Changara
Os olhos delas são pássaros tristes sem voo
que no desespero da fome acumulada
comem estrelas como se fossem grãos de milho.
Quando as sementes secaram nos campos
e o sangue secou nas veias dos rios
e a seiva secou nas veias das plantas
e o sol secou os celeiros da aldeia,
serpentes famintas silvam em volta
do peito cindido. Uma toupeira chora
ao frémito dos embondeiros. Grave,
arde sobre a erva amarga a dor:
Das luas engolidas pelas crianças

quantas tardará a ecoar nos jornais?



(imagens da internet)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Viajando por Moçambique - Parte II

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Cabeça do Velho

Carregamos o jipe, bem cedo após o “mata-bicho”, despedimo-nos do pessoal e saímos em direcção ao Chimoio. Para trás ficava a serra da Gorongosa com todos os seus mistérios.

Cerca de 140Km nos esperavam pela frente, umas duas horas de viagem, as condições da EN6 era desconhecida apesar de nos terem garantido estar em óptimas condições.

Alguns quilómetros percorridos e verificamos não ser propriamente uma pista.

O capim da beira da estrada cobria parte da paisagem engolindo algumas cantinas que outrora haviam tido a sua época e agora apenas as velhas paredes teimavam em marcar um passado já inexistente.

Cruzando caminho algumas gingas ora montadas ora “guínhadas” * á mão pela impossibilidade de serem montadas devido á carga que levavam.

Vila Pery um destino que queria visitar, tinha muitas recordações, aninhei-me a um canto com meus pensamentos para decidir por onde começar e como iria encontrar aquela cidade, e chegamos, avistando ao longe o monumento de ferro sem pintura, na praça outrora relvada, agora de chão “descascado” onde quase toda a gente tirava fotografias, ainda me recordo da que aparece na capa do disco do conjunto Oliveira Muge.



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Muita coisa não reconheci tal a  degradação por falta de conservação.

Sitio para almoçar foi uma incansável procura.

Enquanto se aventuravam nessas voltas pedi que me deixassem por momentos em frente do velho colégio, uma imagem que não cabia na minha memória, e ainda me questionei se seria aquele mesmo edifício.

colegio



Abri a caixa de memórias que há muito havia encerrado.


"Fora no ano de 1962 que saíra pela primeira vez do “colinho” da família para me aventurar a ir estudar para o colégio mais conceituado da altura.

A muito custo meu pai fizera a matrícula, apresentara todos os requisitos para ingressar na instituição, sempre com uma tristeza no rosto pela separação que se adivinhava da sua menina, do seio familiar.

Uma longa lista de enxoval que teria que me acompanhar devidamente marcada com um numero que me fora atribuído “18”. Ora bordado ou marcado a tinta-da-china.

Foram meticulosamente adquiridos, vestidinhos lindos e todo resto de roupa necessária para o enxoval durante o tempo de internato.
Tudo novo para mim.

Rapidamente chega o dia da ida para o colégio, mal dormira essa noite, logo pela manha mala na bagageira do carro e lá percorremos os cerca de 400 km que separavam a cidade de Tete a Vila Pery.

Ai começava acordar para a realidade, tão longe que aquilo era de casa, mas animava-me a ideia que outras meninas também lá estavam por isso seria divertido…

Á chegada paramos o carro na rua da porta principal de acesso ao colégio, e do lado contrário um imenso pinhal fazia sombra ao automóvel que meu pai ali estacionara.

Atravessamos um  jardim e á nossa espera uma freira pede-nos que entremos para uma sala pequena mas simpática, logo reparei do lado esquerdo um enorme quadro com fotografias tipo passe de meninas que certamente estariam também ali a estudar, e mais não era que o quadro de honra das melhores alunas do colégio.

Safardana como sempre fui, esbocei um sorriso por nunca me poder imaginar naquele grupo.

E nunca aconteceu mesmo, não me enganara!

Logo as despedidas, e pegando na mala atravessei uma porta que me deu entrada a um mundo novo.

Inicialmente mais não era que um extenso corredor que iria ter, sabe-se lá onde, mas aos poucos reparei em varias portas que dava para uma data de salas de aula.

Ao fundo do lado esquerdo uma escadaria dava acesso a um primeiro andar, zona dos dormitórios, com sorrisos levaram-me até cama daquele que seria o meu dormitório dali para a frente. ( em frente ao cubículo onde dormia a freira que nos guardava noite dentro)


Uma camarata, dum lado e de outro camas alinhadas uma mesinha de cabeceira e aos pés uma cadeira.

Questionava-me onde iria arrumar as minhas roupas, os meus vestidinhos e tudo aquilo que com tanto amor minha mãe havia arranjado para levar.

Pois é, começara a desilusão…tudo me foi confiscado para a rouparia onde ficariam guardadas até delas necessitar num longínquo regresso a casa nas ferias e apenas nessa altura.

Ali a entrada era proibida apenas acesso restrito as freiras.

Comigo apenas o sabonete o copo de dentes, um pente, uma toalha de rosto e um pijama.

Foi-me atribuída uma bata e um cinto de cabedal, uma muda de roupa interior os sapatos e nada mais.

Tudo arrumadinho no espaço exíguo que me havia sido atribuído.
A partir desse dia ficara para trás o sonho de menina vaidosa e mimada e a dura realidade chegara.

Claro que caíram as primeiras lágrimas, que rapidamente limpei para não dar parte fraca quando me fora juntar as restantes meninas que já haviam chegado antes.

Cheguei-me a Isabel Antunes que apesar de mais velha já a conhecia pois há muito privava com ela dos tempos do primeiro colégio em Tete.
.
O resto tudo gente nova.

A rotina instalou-se, o deitar cedo após o estudo da noite, os banhos de água fria pela manha, o esperar a vez para a higiene, as formaturas duas a duas por tudo e por nada, as papas de farinha de milho ao mata-bicho, as intragáveis toranjas, as carcaças com doce de goiaba e o copo de sumo marado ao lanche, as refeições em silêncio, os castigos de comer sozinha numa mesa ao fundo do refeitório….enfim, um sem número de coisas que se não esquece.

A imagem que guardo de quando estávamos na sala de aula e olhávamos para a porta que tinha uma “vigia” de vidro quadrada atraves do qual víamos o rosto carrancudo da freira a vigiar-nos.

As batas limpas para mudarmos era apenas uma vez por semana, ora isto no tempo de calor, nos sovacos ficava o tecido duro e fedido, mas até as mudarmos as pregas tinham que manter-se aprumadas.

O dormitório das grandes, como todas gostaríamos de poder estar, tinham divisórias em placas de madeira que dava uma privacidade a quem lá dormia, mas isto era apenas para as mais velhas.

As meninas que dentro do colégio tinham privilégios que as “maçaricas” não tinham, e olhavam-nos com um ar superior e uma autoridade como se fossemos de outro planeta.

Um dia passei-me completamente após ser rebaixada em frente a todas as colegas no intervalo de uma aula, agarrei-me aos cabelos de quem no fez  e bati-lhe, mesmo ao ponto de terem que nos separar.

Fiquei um mês de castigo a comer sozinha na tal mesa ao fundo do refeitório e sem direito a recreio, mas feliz!

A menina do episódio, encontrei-a anos depois em Salisbury, por capricho do destino casada com um colega e amigo do meu marido.

Mas tinha amigas, muitas que recordo com saudade.
Foram bastas vezes que me ajoelhava na capelinha que existia no pátio de trás, onde muitas alunas que cabulavam o ano todo iam pedir ajuda para os testes em troca de promessas sei lá se algumas vezes cumpridas.

Eu apenas pedia que o meu papá me fosse buscar depressa, bem que lhe escrevia cartinhas contando a minha saga mas as mesmas eram censuradas e jamais chegavam ao destino acontecendo o mesmo com as que recebíamos.

Quando alguém vinha de Tete para a Beira, minha mãe mandava-me um bolo ou bolachinhas que eram confiscadas de imediato para um armário ao canto da sala de jantar e eram dadas racionadas até que acabavam por endurecer e ir para o lixo.

A seguir á dita capela, atravessando uma divisória de rede com maracujás dependurados cujas flores me alegravam o dia, havia o campo de jogos onde muitas manhas frias com um simples fato de ginástica fazíamos a aula.

De notar as temperaturas de inverno em Vila Pery não eram muito quentes.

Por detrás do colégio um pátio enorme com sombras onde fazíamos o nosso recreio de fim-de-semana, e pasme-se algumas lajes de cimento que diziam ser campas pois seria um antigo cemitério.

Uma vez por outra tínhamos o passeio de domingo, íamos em fila duas a duas ate ao fim da rua e regressávamos.
Passávamos pelos cafés ou cinemas onde a juventude se divertia e ficávamos com uma imensa inveja!
Nas férias grandes imediatas decidi, não voltaria mais.

Por justiça reconheço que muito aprendi nesta casa, educação, respeito, e conhecimentos para o resto da vida."

Alguém me tocou nas costas a chamar-me, para o almoço, o que me acordou dum tempo cujo espaço seria de mais de meio século para regressar ao presente.
Olhei uma última vez para trás e despedi-me de mais uma página da minha juventude, limpando os olhos de uma lágrima de saudade.

 *Guínhadas=empurradas


(imagens da internet)