Que meus filhos e netas recordem o meu amor pela escrita! Afinal as histórias são feitas para serem partilhadas. Só assim elas se propagam e se perpetuam...

sábado, 28 de setembro de 2013

D. Emilia

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D. Emilia vivia há muitos anos no interior, confinada a uma cantina do mato para onde fora levada logo após o casamento, pelo homem que a trouxera da Metrópole num casamento por procuração.

Da sua juventude de miséria vivida nos anos salazaristas, tudo seria melhor a ficar por ali sem esperança no futuro. O mais que poderia era casar com um "Toinho "que em nada lhe iria alterar a vida quotidiana do amanho da terra e do gado para tratar.

Chegara a aldeia o “Africano”, Jose que havia partido há anos para terras de Africa e agora regressara exibindo toda a sua vaidade de ter vencido e viver bem.

Com ele algumas fotos dos amigos africanos e não só, também de alguns brancos que o acompanhavam naquelas terras.

Secretamente trazia uma fotografia de Luis, que cansado de viver a vida africana só, e no medo de acabar com uma qualquer preta ou mulata que o aconchegava nas noites de cacimba, queria arranjar noiva branca.

José, numa conversa junto a eira da aldeia, onde atarefada Emilia erguia o grão, fala no amigo e conta-lhe como seria boa a vida se ela quisesse “noivar” o rapaz, dando todas as boas referencias ajudando a apresentação.

Cansada do trabalho e com a palha do centeio a picar-lhe o corpo, ouve a mãe gritar para que recolhesse o gado que pastava por ali e de regresso “botasse” agua na belga nas couves antes de ir para casa.

O corpo pedia e de alma cansada, aceita que se escrevam e vão trocando letras durante meses até que Luis lhe propõe que se case com ele.

Os pais que apesar de não o conhecer fazem o seu juízo de valor, e aceitam e imediato pois que melhor partido poderiam arranjar que um “Africano” bem de vida.

Num fechar de olhos Emilia de 20 anos apenas, casa por procuração e vê-se metida num navio a caminho do sonho de ser como a senhora morgada, dona das terras da aldeia que tinha charrete, vivia bem numa casa grande, com pessoal amanhando as terras.

É longa a viagem, mais o tempo que se encontra deitada por conta dos enjoos, que com o tempo vai passando.

Até que um dia ao longe se vê terra, seria o destino certamente pois aquele calor que se fazia sentir, e que lhe colava a roupa ao corpo só poderia ser mesmo a “sua Africa”.

Ao anoitecer desembarca no porto da Beira, de olhos esbugalhados procurando o desconhecido que já era seu marido por lei, na esperança de o localizar no meio de tanta gente que ali estava aguardando o navio.

Um braço esticado acena-lhe indicando a sua presença, era ele o homem que esperava encontrar. Rapidamente recolhem a bagagem e saem do porto.

Após almoçarem embarcam no comboio que os levaria a Tete. 

Trocam poucas palavras apenas para saberem um pouco de como havia decorrido a viagem, e indo travar-se de conhecimentos que as cartas deixaram em branco.

No dia seguinte, moídos da viagem descansam pela primeira vez numa pensão onde passam a noite, onde se dão ao conhecimento intimo num casamento agora assumido.

A cidade é pequena, poucas casas mas encantam Emilia apesar de estranhar tanta gente circulando de tez negra, o que lhe faz muita confusão.

Ao meio da manha, Luis chega com uma Chevrolet azul carregada de mercadoria, e leva-a para bem no interior do mato, no Dedza, onde ficava a cantina, que seria o seu lar.

As estradas de terra batita, o baloiçar da carrinha pelos “mecurros” até chegarem ao destino deixam-na amedrontada e moída de cansaço.

As lagrimas caem silenciosas, mas nada há a fazer senão seguir o curso de seu destino.

Passaram muitos anos, Emília foi-se habituando aquela vida de cantineira, já não tinha medo da noite nem dos barulhos, fora-se habituando aos cheiros á comida, a tudo.

O seu homem tratava-a bem, aprendeu a ama-lo, ajuda no que podia, e á noite já não se sentia cansada como outrora na aldeia que deixou.

Aprendeu a gostar dos serões á luz do petromax, da noite enrolada junto a ele com medo dos ruídos da noite.

Ao domingo sentavam-se na varanda nas cadeiras de lona olhando a serra, ouvindo a radio, única ligação ao mundo exterior, ou desciam a povoação onde deixavam e lavavam o correio.

O tempo foi passando, e continuava D. Emilia sentada na varanda da casa á tardinha, olhando o infinito talvez tentando ver a aldeia de onde saíra, num silêncio profundo apenas quebrado pelos sons de Africa, que passaria pela cabeça de D. Emilia?

Seria ela agora como a senhora morgada lá da terra?