Que meus filhos e netas recordem o meu amor pela escrita! Afinal as histórias são feitas para serem partilhadas. Só assim elas se propagam e se perpetuam...

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Vila Pery



A propósito de uma “quezilia” nascida algures por ai, relembro um texto escrito há tempos, inserido numa pagina que escrevi sobre “Viajando por Moçambique.
Paginas da vida, inesqueciveis aos fim de meio seculo!
 ...
Carregamos o jipe, bem cedo após o “matabicho”, despedimo-nos do pessoal e saímos em direcção ao Chimoio.

 Para trás ficava a serra da Gorongosa com todos os seus mistérios.

Cerca de 140Km nos esperavam pela frente, umas de duas horas de viagem, as condições da EN6 era desconhecida apesar de nos terem garantido estar em óptimas condições.

Alguns quilómetros percorridos e verificamos não ser propriamente uma pista.

O capim da beira da estrada cobria parte da paisagem engolindo algumas cantinas que outrora haviam tido a sua época e agora apenas as velhas paredes teimavam em marcar um passado já inexistente.

Cruzando caminho algumas gingas ora montadas ora “guínhadas” (empurradas)  devido á carga que levavam.

Vila Pery um destino que queria visitar, tinha muitas recordações, aninhei-me a um canto com meus pensamentos para decidir por onde começar e como iria encontrar aquela cidade, e chegamos, avistando ao longe o monumento de ferro sem pintura, na praça outrora relvada, agora de chão “descascado” onde quase toda a gente tirava fotografias, ainda me recordo da que aparece na capa do disco do conjunto Oliveira Muge.

Muita coisa não reconheci, tal a  degradação em que se encontravam.

Sitio para almoçar foi uma incansável procura.

Enquanto se aventuravam nessas voltas pedi que me deixassem por momentos em frente do velho colégio, uma imagem que não cabia na minha memória, e ainda me questionei se seria aquele mesmo edifício.

Abri a caixa de memórias que há muito havia encerrado.

Fora no ano de 1962 que saíra pela primeira vez do “colinho” da família para me aventurar a ir estudar para o colégio mais conceituado da altura.

A muito custo meu pai fizera a matrícula, apresentara todos os requisitos para ingressar na instituição, sempre com uma tristeza no rosto pela separação que se adivinhava da sua menina, do seio familiar.

Uma longa lista de enxoval que teria que me acompanhar devidamente marcada com um número que me fora atribuído “18”.

Foi meticulosamente adquirido, vestidinhos lindos e todo resto de roupa necessária para o enxoval durante o tempo de internato.

Tudo novo para mim.

Rapidamente chega o dia da ida para o colégio, mal dormira essa noite, e logo pela manhã, mala na bagageira do carro e lá percorremos os cerca de 400 km que separavam a cidade de Tete a Vila Pery.

Ai começava acordar para a realidade, tão longe que aquilo era de casa, mas animava-me a ideia que outras meninas também lá estavam por isso seria divertido…

Á chegada paramos o carro na rua da porta principal de acesso ao colégio, e do lado contrário um imenso pinhal fazia sombra ao automóvel que ali estacionara meu pai.

Atravessamos um  jardim e á nossa espera uma freira pede-nos que entremos para uma sala pequena mas simpática, logo reparei do lado esquerdo um enorme quadro com fotografias tipo passe de meninas que certamente estariam também ali a estudar, e mais não era que o quadro de honra das melhores alunas do colégio.

Safardana como sempre fui, esbocei um sorriso por nunca me poder imaginar naquele grupo.

E nunca aconteceu mesmo, não me enganara!

Logo as despedidas, e pegando na mala atravessei uma porta contrária que me deu entrada a um mundo novo que inicialmente mais não era que um extenso corredor que iria sabe-se lá onde, mas que dava para uma data de salas de aula.

Ao fundo do lado esquerdo uma escada dava acesso a um primeiro andar, zona dos dormitórios, com sorrisos levaram-me até cama daquele que seria o meu dormitório dali para a frente.

Calhou-me uma cama que (logo em frente estava cubículo onde dormia a freira que nos guardava noite dentro)

Uma camarata, dum lado e de outro camas alinhadas uma mesinha de cabeceira e aos pés uma cadeira.

Questionava-me onde iria arrumar as minhas roupas, os meus vestidinhos e tudo aquilo que com tanto amor minha mãe havia arranjado para levar.

Pois é, começara a desilusão, tudo me foi confiscado para a rouparia onde ficariam guardadas até delas necessitar num longínquo regresso a casa nas ferias, só e apenas nessa altura.

Ali a entrada era proibida apenas acesso restrito as freiras.

Comigo apenas o sabonete o copo de dentes, um pente, uma toalha de rosto e um pijama.

Foi-me atribuída uma bata e um cinto de cabedal, uma muda de roupa interior os sapatos e nada mais.

Tudo arrumadinho no espaço exíguo que me havia sido atribuído.

A partir desse dia ficara para trás o sonho de menina vaidosa e mimada e a dura realidade chegara.

Claro que caíram as primeiras lágrimas, que rapidamente limpei para não dar parte fraca quando me fora juntar as restantes meninas que já haviam chegado antes.

Cheguei-me a Isabel Antunes que apesar de mais velha já a conhecia.
O resto tudo gente nova.

A rotina instalou-se, o deitar cedo após o estudo da noite, os banhos de água fria pela manha, o esperar a vez para a higiene, as formaturas duas a duas por tudo e por nada, as papas ao matabicho, as intragáveis toranjas, as carcaças com doce de goiaba e o copo de sumo marado ao lanche, as refeições em silêncio, os castigos de comer sozinha numa mesa ao fundo do refeitório.

Enfim, um sem número de coisas que se não esquece.

A imagem que guardo de quando estávamos na sala de aula e olhávamos para a porta que tinha uma “vigia” de vidro quadrada e víamos o rosto carrancudo da freira a vigiar-nos.

As batas limpas para mudarmos era apenas uma vez por semana, ora isto no tempo de calor, nos sovacos ficava o tecido duro e fedido, mas até as mudarmos as pregas tinham que manter-se aprumadas.

O dormitório das grandes, como todas gostaríamos de poder estar, tinham divisórias em placas de madeira que dava uma privacidade a quem lá dormia, mas isto era apenas para as mais velhas.

Essas meninas que dentro do colégio tinham privilégios que as “maçaricas” não tinham, olhavam-nos com um ar superior e uma autoridade como se fossemos de outro planeta, tendo ate direitos sobre nós que acabávamos por nos sentir “nada”.

Uma vez passei-me completamente após ser rebaixada em frente a todas as colegas no intervalo de uma aula, agarrei-me aos cabelos de uma e bati-lhe, para valer mesmo ao ponto de terem que nos separar.
Fiquei um mês de castigo a comer sozinha na tal mesa ao fundo do refeitório e sem direito a recreio, mas feliz!

A essa colega, encontrei-a anos depois em Salisbúria, por capricho do destino casada com um colega e amigo do meu marido.

Mas tinha amigas, muitas que recordo com saudade.

Foram bastas vezes que me ajoelhava na capelinha que existia no pátio de trás, onde muitas alunas que cabulavam o ano todo iam pedir ajuda para os testes em troca de promessas sei lá se algumas vezes cumpridas.

Eu apenas pedia que o meu papá me fosse buscar depressa.

Bem que lhe escrevia cartinhas contando a minha saga mas as mesmas eram censuradas e jamais chegavam ao destino acontecendo o mesmo com as que recebíamos.

Quando alguém vinha de Tete para a Beira, minha mãe mandava-me um bolo ou bolachinhas.

Eram confiscadas de imediato para um armário ao canto da sala de jantar e eram dadas racionadas ate que acabavam por endurecer e ir para o lixo.

A seguir a esta capela atravessando uma divisória de rede com maracujás dependurados cujas flores me alegravam o dia, logo em frente o campo de jogos onde muitas manhas frias com um simples fato de ginástica fazíamos a aula.

De notar as temperaturas de inverno em Vila Pery  eram gélidas.

Por detrás do colégio um pátio enorme com sombras onde fazíamos o nosso recreio de fim-de-semana, e pasme-se algumas lajes de cimento que diziam ser campas pois seria um antigo cemitério.

Uma vez por outra tínhamos o passeio de domingo, íamos em fila duas a duas ate ao fim da rua e regressávamos.

Passávamos pelos cafés ou cinemas onde a juventude se divertia e ficávamos com uma imensa inveja!

Nas férias grandes imediatas decidi não voltaria mais.

Por justiça reconheço que muito aprendi nesta casa, educação, respeito, maneiras correctas de estar na vida.

Alguém me tocou nas costas a chamar-me, para o almoço, o que me acordou dum tempo cujo espaço seria de mais de meio século para regressar ao presente.

Olhei uma última vez para trás e despedi-me de mais uma página da minha juventude, limpando os olhos de uma lágrima de saudade.



domingo, 6 de outubro de 2013

O ASSOBIO.

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Domingo,  diferenciado pelo dia de descanso, da missa dominical, das tardes no café na jogatina ou apenas deitando conversa fora.

Esta manhã, reparei num individuo, aperaltado de camisa lavada cabelo bem penteado, de mãos nos bolsos caminhando para a missa.

Assobiava pelo caminho, uma qualquer melodia mas de cara alegre e olhos brilhantes transmitindo uma felicidade enorme, la ia feliz acompanhando os passos com o assobio.

Sorri pois já há muito não via alguém de ar sereno assobiando á vida num hino de alegria.

O assobio era das coisas que se aprendia de menino, poucos eram o que não sabiam faze-lo.

Ou como instrumento de musical, ou como meio de chamamento ou até elogio a quem passava. 

O sopro afinado a encher as ruas misturando-se com os barulhos da cidade, destaca-se pela sua melodia.

Era diferenciado das mais inúmeras maneiras de se ouvir, uns mais trabalhados outros imitando o piar dos pássaros, outros de sons combinados.

Todos sabiam assobiar, e neste contexto recordo muito da minha vida.

Os namoricos que na calada da noite resolviam chamar atenção, ouvia-se o silvo especial que fazia a pessoa a quem era dirigido, de imediato assomar a janela a perscrutar na escuridão da noite a silhueta da pessoa amada.

Meu pai que era de poucas palavras, nunca falava alto, para nos chamar usava o assobio, um num som bem especial que conhecíamos á légua.

Quando o ouvíssemos era de imediato que aparecíamos, e nos bailes quando a hora de regressar chegava, era um tocar a recolher sem dizer palavra.

O assobio, esse modo de comunicar antigo que com o tempo foi esquecido.

Talvez mesmo já nem apeteça assobiar, porque este acto vinha do fundo da alma, transmitia  o seu estado de alegria e despreocupação.

Hoje a tristeza abafou essa vontade, mais cedo ou mais tarde,a vida voltará a ser tal como o canto de uma ave, leve, breve, suave.