Que meus filhos e netas recordem o meu amor pela escrita! Afinal as histórias são feitas para serem partilhadas. Só assim elas se propagam e se perpetuam...

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

É dia primeiro de Janeiro


Estamos no Ano Novo.
Não me apetece  escrever muito hoje até porque a noite foi longa.
Tambem penso que não seria capaz de descrever tão bem este primeiro dia, como este Moçambicano cujo texto que aqui coloco, e encontrei publicado algures:



É dia primeiro de Janeiro. É madrugada fresca. Os ponteiros do relógio roçaram, faz tempo, as duas horas. Do mar a estimulante brisa e o embalador blus. A cama me convoca e eu não resisto. Abandono estes encantos que muito os quero viver.
Ainda ouvi os sinais das últimas mensagens telefónicas emitidas pelo celular, mas não as leio. Não as leio. Não as leio e me aconchego num todo perfumado de um primeiro dia de um novo ano. Também não as leio porque acredito que precisarão de respostas e eu não as posso dar. Estou a responder a uma convocatória. E respondo. E depois não me lembro de nada até que volto a viver as emoções deste dia. A manhã já vai a meio.
As pessoas estão alegres. A dormirem, mas alegres. Entro dentro de mim e não preciso de ir ao fundo para descobrir que estou com fome. Fome monstra. No resto da casa não há sinal de alma nenhuma se movimentando, o que quer dizer que ainda todos saboreiam o cansaço da celebração da transição.
Sinto a necessidade de bater às portas e fazer com que elas saltem das camas, ou que se levantem das esteiras, as pessoas que me podem resolver o problema, mas adio a minha vontade. Adio o meu desejo. As pessoas precisam de descansar.
Posso distrair a fome fazendo outras coisas. Meto um cinto à volta da barriga e o ligo à corrente eléctrica. Vinte minutos de vibrações, que me fazem bem, mas não me tiram a fome. Puxo por uma gaveta e do seu interior tiro um golfinho que o ligo à corrente eléctrica e vou passando-o pelas veias e outros lugares deste meu enorme corpo e no final, sinto que a fome ainda me habita, mas continuo a adiar a vontade, o desejo de acordar as pessoas.
Decido-me pelo banho. Um banho de chuveiro. Rápido. E ainda não acabei de me secar e oiço o tilintar de talheres, o chocalhar de pratos e sorrio. Sorrio de muita satisfação: as pessoas acordaram sem que tivessem por mim sido sacudidas. Nenhuma delas tem hipótese de dizer mal de mim, de me tomar por um “chato”.
Como aquele que não deixa os outros à-vontades. Isto me deixa particularmente feliz. Descubro então que a fome me incomoda pouco. Talvez pela certeza de que dai a pouco vou eliminá-la. Arrumo-me. Saio do quarto e já na sala, pelas cortinas abertas diviso uma mesa já posta debaixo de uma mangueira com um misto de frutos maduros e verdes. Ainda debaixo dela dois bancos caiados de branco.
Cabem neles seis pessoas do meu tamanhão muito à-vontade. Para lá me dirijo e me sento à cabeça da mesa aguardando pela comida e ela não tarda. Como. Como e ainda estou com vontade, mas tenho que parar. E paro. Depois é conversa, sobre tudo e sobre nada, porque no final dissemos que tudo era para esquecer. E esquecemos. E lembramo-nos que o dia anterior podia ter sido de excessos por parte dos nossos convivas. Alguns não tão jovens como eu. Todos mediram a sua tensão arterial, poucos, mas muito poucos precisavam cuidar-se. Mas nada que alarmasse. É apenas mania de cuidados em alta.
A operação levou bons minutos, que poucos não eram. Mas foi gratificante esse exercício. E então mais conversa, conversa mais no domínio da espiritualidade, na procura de interpretação de alguns fenómenos, na procura de respostas às perguntas, às interrogações que colocam e tudo acabando em “talvezes”, “provavelmentes”. À conversa, pássaros de espécies diversas assistiam, acompanhavam. Uns nos ramos da mangueira por debaixo da qual nos encontrávamos. Outros nos ramos do canhoeiro ao lado.
Outros ainda passeando sobre a relva, sobre o cimento. E foi muito o tempo que passou. Dá-me um prazer enorme ver estes pássaros. Dá-me um prazer enorme ouvir o seu enternecedor canto. E então abandono a conversa e me deixo levar pela existência, e a inveja pela liberdade dos pássaros começou a corroer-me. A corroer-me tão fundo e para tão fundo de mim esforço-me por ir e ainda não cheguei ao fundo, me vem à memória imagens como: “aquele passarinho estava doente”. E neste preciso momento um passarinho, a uns trinta metros, aterriça e se passeia sobre a relva ao mesmo tempo que vai fazendo algumas debicadelas. Agora salta para uma espécie de lancil e não se movimenta. Move a cabeça para os lados e continua com o seu canto. Puxo pela fisga à qual meto um canhu verde. Não me levanto da cadeira, cadeira plástica e branca, e atiro certeiro. “Matei o passarinho”. Ela não acredita, mas os outros que o viram tombar do outro lado, celebravam o feito. Levanto-me da cadeira e caminho resoluto. Abaixo-me e sem roçar na relva, o passarinho, já sem vida, fica entre o polegar e o indicador da minha grande mão esquerda e o agitei no ar. Ouço um bater de palmas.
Palmas de contentamento. Palmas de celebração. E de repente me acho profundamente triste: Matei o pássaro, mas não fiquei com a sua liberdade. Depenei-o com muita rapidez e peço que o assassem. Veio depois à mesa. Ela divide-o a meio. Nem a cabecinha deixei. Ainda assim não fiquei com a liberdade do passarinho, porque não é do passarinho que preciso matar para ser livre. Para ser livre preciso ir muito fundo para dentro de mim. E quando chegar ao fundo procurar ir mais a fundo e quando lá chegar encontrarei as respostas que busco.
Matei o passarinho, mas não fiquei com a sua liberdade.
  • Djenguenyenye Ndlovu

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