A Pascoa, como me lembro da minha Pascoa de antigamente em
terras onde o tempo era longo e o conceito de família e amigos existia.
Oh como me lembro da azáfama naquela cozinha, entre temperos do
cabrito em tabuleiro de lata e os bolos que deixavam um cheirinho doce pela
casa.
O cabrito, encomendado e comprado ao regulo da aldeia possuidor
de vários gados e nos fornecia o leite de vaca fresquinho ainda a espumar,
todos os dias pela manhã trazido pelo filho mais novo dentro de uma leiteira de
alumínio.
Animal ainda pequeno, escolhido cuidadosamente,
trazido de véspera para cair nos temperos de minha mãe e dormir na geleira até
ao dia de Pascoa onde caía no forno da padaria já reservado há semanas.
Era uma fila imensa de tabuleiros cobertos de panos brancos que
iam entrando á vez no forno até estarem prontos á hora do almoço.
Até lá íamos a missa, enchia a igreja de fiéis bem vestidos de véus
sobre a cabeça, que viria cair em desuso mais tarde, livrinho de missa na mão.
As crianças de enormes laçarotes no cabelo vestidos novos estreados na ocasião,
e soquetes impecavelmente brancas pelo tornozelo e sapatinhos raso.
Finalizada a missa, era a correria para casa, à espera do Sr.
Padre que fazia a visita pascal a todas as casas levando a sua bênção e uma
palavra amiga a todos paroquianos.
Na mesa de sala de jantar sobre uma toalha branca de renda,
trazida há muito da metrópole no enxoval da dona da casa, bordada a ponto pé de
flor ou ponto de cruz. Haviam sido bordadas sentadas a lareira nas longas noites
de inverno ou na soleira da porta ao fresco enquanto davam dois dedos de
conversa com quem passava.
E todos os anos sobre ela a melhor loiça colocavam a doçaria da ocasião,
bolos de receitas passadas entre amigas, e salgadinhos variados.
Numa mesa ao
lado perfilavam os copos impecavelmente alinhados, enquanto gelavam as bebidas e ao lado uma bandeja com cálices
e uma garrafa de licor feito pelo meu pai após deixar macerar as cascas de
laranja ou outras as quais depois juntava o açúcar e o álcool. Ainda hoje sinto
o gosto desse licor.
E esperávamos o toque do sino que anunciava a chegada do Sr. Padre,
enquanto nos alinhavamos á entrada, direitinhos ajoelhando-nos para beijar a
cruz num respeito completo.
Bastas vezes depois disto tentávamos fugir as grossas gotas de água
benta lançada quando da bênção da família, entre risinhos que quase sempre
acabava num puxão de orelhas.
Demorava pouco a visita mas havia sempre tempo para uma bebida, um petiscar de alguma iguaria e dois dedos de conversa enquanto recolhiam o envelope
da “côngra” (palavra correcta é côngrua, contribuição anual de cada família à igreja).
Logo após a saída do Sr. Padre de nossa casa, enquanto ele se
dirigia a outro lar, já nos corríamos para a casa da família ou vizinhos para
lá voltarmos a receber a visita do senhor. Era um corrupio de casa em casa
entre risota e alegria até a hora do almoço.
A tarde era reservada as visitas, recebíamos sentados ao fresco
numa amena cavaqueira até o cair da noite.
Anos passaram, e mais tarde já em Portugal a Pascoa era idêntica
aquela atrás descrita, as primeiras passadas na aldeia a azáfama era a mesma.
Uns dias antes mal o sol abria era um estendal de cortinas e
roupas de casa lavadas primorosamente, soalhos esfregados casas cheirosas de
alecrim.
Era a preparação para o dia de Pascoa, começava logo ali juntando
toda a família, até as vésperas em que do mesmo modo as carnes eram temperadas
em tabuleiros de barro numa vinha de alhos e louro, enchiam os fornos e deixava um cheiro apetecível.
Masseiras enchiam-se de fermentos e farinhas misturadas e
batidas à exaustão por braços fortes de mangas arregaçadas, e rostos corados
sorrisos abertos.
Dúzias de ovos, azeite á farta numa mistura deixada a levedar e
posteriormente tendido em bolos de azeite obrigatórios nas mesas da Pascoa.
O pão-de-ló, no centro da mesa, ao lado do bolo de azeite, do
bolo doce e laranjas enfeitavam a mesa na Pascoa.
A igreja pequenina enfeitada de lindos ramos de flores cortados
nos quintais e junto ao ribeiro onde cada um as reservava para a ocasião, lá
fora o chão coberto de urzes e alecrim entre pétalas de rosas exalavam um
perfume sem igual.
Terminada a missa regressavam apressados a casa, havia que dar
andamento ao almoço.
Abria-se a porta ao padre que fazia a visita pascal, a pé por
toda a aldeia, acompanhado pela criançada que o seguia aos saltos e aos gritos
de alegria dando sinal da aproximação deles.
As famílias e vizinhos acompanhavam as visitas nas casa de cada
um, por vezes eram pequenas para tanta gente mas era um comungar da festa
religiosa, da amizade da familia e que
festejavam todo o dia.
Foi e era assim sempre, hoje deixou de haver essa comunhão
religiosa e famíliar, já poucas famílias o fazem apenas os mais velhos porque aos
mais novos é a oportunidade de fazerem férias numa qualquer praia ou viajarem.
Tenho saudades desse tempo, dos cheiros do alecrim das flores brancas
que enfeitavam as casas, das mesas fartas de iguarias da época, das reuniões de
família, dos risos e da alegria de todos.